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A mulher que trabalhava na fábrica
Fevereiro 8, 2023

Na fábrica há uma mulher, que, como quase todas as mulheres que aí trabalham, tem uma função administrativa. É ela que organiza o Arquivo de Documentação. A mulher chega às 9h00, e sai às 18h00, impreterivelmente, todos os dias. Durante o dia, é raro vê-la, porque a mulher arruma-se no Arquivo e aí fica, organizando os livros, as fotocópias, os cadernos, os dossiers. O Arquivo está cheio de ácaros e é difícil respirar lá dentro. Mas a mulher não é mais do que um caderno velho, onde alguém rabiscou algumas notas, mas que está hoje amarelado, amachucado e velho. O seu cabelo é grisalho, provavelmente menos grisalho do que aparenta ser, mas a mulher traz a cabeça coberta de pó, sendo impossível distinguir os cabelos brancos dos cabelos empoeirados. O pó está-lhe entranhado na cabeça. A mulher veste-se sempre da mesma maneira: umas calças de lã, desbotadas e russas de tanto uso e um casaco de malha, cheio de borbotos, desgastado como ela. Os olhos estão empedernidos e semi-abertos e nunca olham realmente para lado nenhum. A sua voz é rançosa e arrastada, mas as últimas sílabas de cada palavra são cuspidas como veneno. A mulher nunca sorri.

À volta da mulher, o mundo corre, indiferente à sua existência. As pessoas desviam-se dela, evitam o contacto, quando por ela passam. Como se a miséria da sua existência fosse pegajosa e se pudesse colar a elas, como ranho viscoso. A mulher finge não perceber. Não quer perceber! A mulher sabe-se miserável e só. E é tudo quanto lhe basta saber! Que valor terá a sua existência?

Houve um dia em que a mulher não apareceu. Só ao fim de três dias, quando os papéis se amontoaram à porta do Arquivo, alguém deu por falta dela. Pobre mulher! Que lhe teria acontecido?

Logo se descobriram as maravilhas da sua vida! A pobre mulher tinha um dia sido feliz, contava-se. Quando a sua irmã era viva. Mas a sua irmã tinha morrido com uma insuficiência renal. A mulher dera-lhe um dos seus rins, antes da irmã morrer, mas nem assim fora possível salvá-la.

Perguntavam-se as pessoas: como poderia a mulher ser feliz? Como não se poderia sentir traída? Fintada pela vida?

Logo se formou uma comitiva para carpir a mulher. A mulher foi enterrada com honras próprias de um herói.

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